domingo, 24 de junho de 2012

Dos flashes tão humanos


Andava pela rua, cabisbaixa. Contava os paralelepípedos e percebia que nem todos são iguais. A rua, por causa das chuvas de verão parecia tombar para o lado direito onde se encontrava a galeria de águas a qual estava coberta, mas corroía àquela, por baixo, feito uma doença terminal. A chuva fina e fria caía sobre a paisagem que se tornava branca, enevoada. Como dizem no interior: Era a serração que vinha com o chuvisco. As casas grudadas de um lado e do outro do caminho, todas escuras. Não se ouviam risos, nem gritos, nem falas. A gargalhada de uma criança ou até mesmo o "Vai se foder!" de um bêbado traria vida àquela monotonia. Uma atmosfera tão morta quanto as ruelas de um cemitério, onde, caso tenham esse gosto pelo estranho, durante a noite deve haver bastante agitação feita pelos ratos, baratas, ossos estalando, gás metano liberado dos corpos em putrefação nas sepulturas, fato que  provoca chamas amedrontadoras (fogos-fátuos) as quais muitos acreditam serem fantasmas batendo um papo de madrugada. 
Voltando à rua. A chuva fina caía como giletes do céu. Cortante, dolorida. O peito ardia e a mente pululava entre várias suposições, questionamentos, conclusões e desatinos. Cada pingo doía a alma. A alma perturbada pela tristeza fica mais suscetível a essas dores mínimas, dores que se tornam tempestades violentas dentro do peito. Caminhava e parecia que quanto mais andava, não saia do lugar. Passos molhados, passos desgostosos. Um exilado de mim, pensava. O que estou fazendo? Sempre uma pergunta ecoava na mente. Os poucos anos vividos atravessavam o caminho como flash-back de um filme mexicano. Atitudes infantis, convencimentos alheios, falta de amor próprio, falsos-amores, humilhações, ingratidão, perdas. Até ali eu não era. Pensava ser e essa conclusão era o espanto torturante. Como os urubus que estraçalham a carniça à beira da estrada, bicando e bicando. A sensação de perda, de traição das vontades próprias é a própria morte, constatação da impotência, do comodismo horroroso ao qual alguns se submetem. Vergonha! Eu pensava. Como pode? Será que é desse jeito? O ser humano desce até os vermes com o intuito de ser Sobre-Humano, mostra sua face imunda. Só quem se cala, afasta-se e observa ao longe, compreende. O silêncio da rua aborrecia-me, assim como o falatório também me aborrece. Sou meio a meio. Meio ar, meio fogo; pouco ódio, mais amor. Intenso amor. Toco fogo no mundo por causa de um argumento ou sensação de injustiça, tanto cometida a mim quanto à outra pessoa. Seguindo pela rua, a chuva aumentava e meu corpo já sentia o frio daquela, que por vezes, amo, chuva. As lágrimas que apertava nos olhos, queriam de toda maneira sair, mostrarem-se para a chuva, enfim dizer: "Vai se ferrar que eu não me incomodo com você!" Até esse pensamento era enganoso. Tinha medo de mostrar para a chuva que ela estava lavando a minha dor, retirando as sombras da alma cansada, apagando todo Ego que de nada vale, uma vez que até a água proveniente do céu é mais forte que nós, seres estritamente "humanos". Os que ainda são humanos, pois constatava, por aqueles dias, que têm muitos "não-humanos" entre nós. Observava os flashes da vida, vindo e indo e, quando o ódio aproximou-se do meu peito para emitir sua ferroada mais ácida, algo me disse suavemente: Estou contigo! Subitamente, a força voltou e os olhos que apertava para não saírem as lágrimas, deixei que fossem livres. As lágrimas de desgosto rolavam pela face e se misturavam a água do céu, essa tão fria, com minha profusão de sentimentos quentes. Um insight ocorreu-me: Estou contigo! Você está comigo? Abra mão do que imagina ser e busque o que imagino, com humildade. Inconforme-se, descompreenda-se! Beba. Tenha sede. Passeie comigo e lhe mostrarei. Essa é a direção! Vamos? Entendi o que me dissera, amenizando aquela sensação terrível, segui o caminho com a companhia em meu peito. A chuva também entendeu e, quando olhei novamente para ela, parecia-me viva. Uma amiga que não queria deixar-me passar por aquele momento sozinha. Concluí ao chegar à porta de casa: Ela, sempre ela. Nunca me abandonara. Sabedoria, Eu te amo.

Joice Furtado - 24/06/2012



"Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros com alma igual. A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas..."


Trecho do Livro dos Desassossegos - Fernando Pessoa

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